A Constituição de 88 e a Lei Orgânica devem ser “guardadas” pelos seus representantes quando o assunto é preconceito, inclusive de gênero


Por Professor Pascoal

pascoalEscrevi para este Blog dias atrás sobre a situação de violências que envolveu a “aprovação” do PME pelo Legislativo. Volto para dizer que, além da violência praticada pelo Executivo –quando ignorou duas Leis Municipais que davam ao CME o direito de exarar parecer sobre o dito Projeto de Lei enviado ao Legislativo – outra violência foi perpetrada no âmbito do Legislativo, quando este Poder, ao arrepio da Constituição de 88 e da Lei Orgânica local, retirou do texto que cria o PME as expressões relativas ao tema de gênero.

Quero destacar que a ação de setores do Legislativo local não é isolada, já que no Congresso a Bancada Fundamentalista, apoiada pela Frente Parlamentar Evangélica, lançou um PL 6583/13, intitulado “Estatuto da Família” que dentre outras coisas pretende vetar outros arranjos familiares que não se enquadrem no modelo heteronormativo, principalmente os casais homoafetivos; quer vetar a adoção de crianças por casais homoafetivos ; e, pior ainda, quer criar uma disciplina intitulada “educação para a família”, tirando desta a responsabilidade de educar os filhos para a vivência dos valores e atribuindo-a a escola –que já tem inúmeras atribuições -. Destaque-se que a OAB/SP, por sua Comissão da Diversidade Sexual e Combate à Homofobia editou nota de repúdio em março passado sobre esta tentativa de fazer o mundo enxergar a partir de uma única ótica, a da imutabilidade da vida, das concepções e contrária aos avanços perpetrados pela ciência, tal qual o que envolve os estudos sobre gênero no Brasil desde a década de 70.

Chamo a atenção para a possibilidade de, ao sancionar tal PL, convertendo-o em LEI, o Executivo incorrer – mais uma vez em ilegalidade e em ilegitimidade, dado o fato de que a Constituição Federal de 88 vedar, no seu artigo 3º, IV, qualquer preconceito, já que este inciso do artigo supracitado diz dos OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA. Além disso, a Lei Orgânica de Ilhéus, artigo 2º, V, numa espécie de “copie e cole”, traz a mesma afirmação, in verbis: “promover o bem de todos, SEM PRECONCEITOS de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. E aqui, destaco que o Executivo e o Legislativo, segundo a Lei Orgânica, são REPRESENTANTES do povo [artigo 6º] e deverão, segundo o artigo 14 da mesma Carta Municipal, no seu inciso XVI: “ zelar pela guarda e observância da sua Lei Orgânica, cumprindo-a através dos seus representantes e fazendo-a cumprir “. E no artigo 16 – onde é tratada a “competência comum” com o Estado e com a União, “zelar pela guarda da Constituição, das leis…” [inciso I] . E a Constituição Federal de 88, no seu artigo 5º, Caput, assim determina: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Radicalizando a determinação anterior quando no inciso XLI do mesmo artigo adverte: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.

Quando, por meio de ação deste naipe se exclui de um texto que pretende ser o “norte” para a vida da comunidade, da sociedade e do estado enquanto ente municipal para os próximos 10 anos, obnubilando o fato de que os estudos sobre a temática de gênero e diversidade são fundamentais para avançarmos na compreensão e na prática de que vivemos numa sociedade plural e que vedar os estudantes da educação básica de participar de tais discussões é “pequeno”, não é salutar e joga para “debaixo do tapete” a realidade de violência, de discriminação, de preconceito, de bullyng e de exclusão escolar que vivenciamos, inclusive no município de Ilhéus.

Deve-se observar que o Brasil é signatário de Documentos internacionais que tratam desta política e que por isso, deve satisfação aos coletivos LGBTT e à diversidade, do mesmo modo que deve satisfação aos países signatários de tais Documentos: “Convenção Para Eliminar Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher – CEDAW”; o “ Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e da Campanha pela igualdade e direitos de população LGBT da ONU”. Logo, não é de bom tom que uma cidade do porte da nossa, que, junto com Itabuna, se constitui pólo aglutinador de possibilidades e virtualidades, com a riqueza cultural, com o povo que tem, com as belezas naturais e afeita ao turismo, tenha destacada na sua face o descumprimento de princípios e objetivos constitucionais e com isto, adote o preconceito, a discriminação e a violência contra as “minorias” em nome do combate às “ideologias de gênero” – conceito que sequer é debatido nos umbrais das universidades e das IES Brasil afora. Pelo contrário, “o conceito de gênero está baseado em parâmetros científicos de produção de saberes sobre o mundo. Gênero, enquanto um conceito, identifica processos históricos e culturais que classificam e posicionam as pessoas a partir de uma relação sobre o que é entendido como feminino e masculino. É um operador que cria sentido para as diferenças percebidas em nossos corpos e articula pessoas, emoções, práticas e coisas dentro de uma estrutura de poder. E é, nesse sentido, que o conceito de gênero tem sido historicamente útil para que muitas pesquisas consigam identificar mecanismos de reprodução de desigualdades no contexto escolar” [Manifesto pela igualdade de gênero na educação: por uma escola democrática, inclusiva e sem censuras”, assinado por diversas instituições de promoção dos direitos vinculados a gênero e a diversidade do país, inclusive NEIM/UFBA].

Para encerrar, quero me associar a todos e todas que lutam por um município livre de preconceitos e que vem na escola um lugar para dialogar sobre temas que ajudem a sociedade a ser melhor, inclusiva e cumpridora dos pressupostos constitucionais e legais para exigir a reparação desta violência praticada quando da votação do PL que cria o Plano Municipal de Educação, sob pena de se jurisdicionalizar a questão para garantir o quanto previsto no artigo 3º, IV da Constituição e no artigo 2º, V da Lei Orgânica do município.

*Pascoal João dos Santos – educador e especialista em políticas públicas para as questões de gênero, raça/etnia pela UFBA/UAB