ONU vem ao Brasil para averiguar prisões arbitrárias


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Um grupo da Organização das Nações Unidas (ONU) desembarca em março no Brasil numa missão que tem como objetivo identificar prisões ilegais no país. Os casos de detentos com transtornos mentais, absolvidos pela Justiça e em cumprimento de medida de segurança em penitenciárias comuns, estão no foco do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária (GTDA), que fica no Brasil entre 18 e 27 de março.

Em série de reportagens publicadas desde domingo, O GLOBO revelou que pelo menos 800 detentos com transtornos, absolvidos pela Justiça, cumprem verdadeira pena em presídios. Outras 1,7 mil pessoas aguardam por atendimento psiquiátrico, boa parte delas no cárcere.

O governo brasileiro já se organiza para receber a visita do GTDA. O grupo surgiu a partir de uma resolução da Comissão de Direitos Humanos da ONU. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República expediu um ofício ao Ministério da Saúde em caráter “urgentíssimo” em 22 de janeiro, comunicando sobre a visita. Desde então, reuniões entre representantes das duas pastas acertam os detalhes do posicionamento do governo em relação à presença do grupo no país.

No ofício, obtido pelo GLOBO, a secretária-executiva da Secretaria de Direitos Humanos, Patrícia Barcelos, informa que o grupo da ONU realiza missões in loco para coletar informações sobre detenções arbitrárias e sobre as causas dessas prisões. Recomendações contra essa prática são elaboradas aos governos dos países visitados.

O documento foi encaminhado à secretária-executiva do Ministério da Saúde, Márcia Aparecida do Amaral, e informa que a missão da ONU chegará a cinco capitais brasileiras: Brasília, São Paulo e outras três a serem escolhidas entre Rio de Janeiro, Porto Alegre, Manaus, Fortaleza e Campo Grande.

Em Brasília, pelo menos quatro mulheres cumprem medidas de segurança em celas comuns do Presídio Feminino, misturadas às outras presas, como O GLOBO mostrou em reportagem no último domingo. Não há espaço adequado para tratamento psiquiátrico, nem encaminhamentos para a rede pública de saúde.

Em São Paulo, 492 pessoas cumprem a medida dentro de presídios (a maioria em centros de detenção provisória) e outras 482 aguardam vaga para tratamento, segundo levantamento da Defensoria Pública. Mais de mil pessoas estão internadas nos três manicômios judiciários que permanecem com as portas abertas no estado.

O foco da visita do grupo da ONU será a “situação das pessoas privadas ilegalmente de liberdade provisória ou definitivamente em carceragens, penitenciárias, unidades socioeducativas, instituições para pessoas em sofrimento psíquico ou drogadição e centros de internação compulsória”, conforme o ofício da Secretaria de Direitos Humanos ao Ministério da Saúde. Entre 1994 e 2011, o GTDA visitou 33 países, quatro deles na América: México, Argentina, Canadá e Colômbia.

A Secretaria de Direitos Humanos diz que não há “qualquer receio dessa visita”. “O governo valoriza a visita como mais uma oportunidade de, em parceria com as Nações Unidas, identificar violações e trabalhar conjuntamente para restabelecer os direitos violados”, sustenta a pasta, por meio da assessoria de imprensa. Sobre a realidade dos presos com transtornos mentais, a secretaria afirma que deve haver uma análise jurídica da situação dos detentos, com a participação da Justiça, do Ministério Público e da Defensoria Pública nos estados.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidiu visitar os presídios onde pessoas com transtornos mentais, em cumprimento de medida de segurança, dividem os mesmos espaços com presos comuns, sem atendimento médico. As penitenciárias mostradas pelo GLOBO serão incluídas no cronograma de visitas elaborado pela Comissão do Sistema Prisional do CNMP, em reunião prevista para a próxima segunda-feira, 25.

– Vamos verificar a situação dos presídios, as irregularidades, o tamanho da população carcerária e o atendimento em saúde. Por dever de ofício, o Ministério Público poderá propor ações na Justiça – disse o conselheiro do CNMP Mario Bonsaglia, responsável pela comissão.

As visitas devem contemplar também manicômios judiciários e alas de tratamento psiquiátrico (ATPs), anexadas a presídios, para onde são mandados presos em cumprimento de medida de segurança ou à espera de um laudo psiquiátrico. Essa já era uma intenção do CNMP, diante da gravidade da realidade nos 26 hospitais de custódia e ATPs em funcionamento no país.

Na última segunda-feira, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) expediu ofícios para as varas de execução penal em São Luís, Goiânia e Brasília – cidades onde a reportagem esteve – e deu um prazo de 15 dias para os juízes fornecerem explicações sobre os casos revelados pelo jornal. O governo federal, por sua vez, decidiu fazer mutirões em todos os presídios e manicômios que têm pessoas com transtornos mentais em situação irregular. Uma portaria do Ministério da Saúde vai criar polos de perícia nos estados e um grupo vai identificar vagas na rede pública de saúde.

Nos estados onde a reportagem esteve, também houve reação da Justiça, do Ministério Público e dos governos locais depois da publicação da série. No Maranhão, a Justiça e a Defensoria Pública decidiram pedir a aplicação de medidas de segurança e o encaminhamento de detentos já absolvidos para um hospital psiquiátrico. A Justiça em Goiás também aplicou medidas de segurança e solicitou a realização de laudos psiquiátricos.

O Ministério Público do Piauí começou a investigar a suposta contratação de servidores fantasmas pela Secretaria de Justiça, que administra os presídios no estado. A maioria dos servidores estava lotada no Hospital Penitenciário Valter Alencar e na Colônia Agrícola Major César Oliveira, onde estão detentos com transtornos mentais. Os pagamentos totais indevidos por parte da Secretaria de Justiça chegam a R$ 1,8 milhão, segundo uma auditoria da Controladoria Geral do Estado (CGE).